Terapia psicodélica, musicoterapia e sound healing: qual é a relação entre essas práticas?
Pesquisas científicas demonstram o impacto do som e da música na eficácia da terapia assistida por psicodélicos.
Tem-se observado nos últimos anos uma renascença da terapia psicodélica na psiquiatria. Os psicodélicos clássicos — como a psilocibina, a DMT e a mescalina — são o foco de diversos estudos científicos, que buscam conferir a eficácia e a segurança do seu uso no tratamento de variados transtornos da mente.
A música, por sua vez, sempre foi resguardada como uma ferramenta poderosa para auxiliar os seres humanos a melhorarem e manterem o bem-estar psicológico. Práticas de sound healing foram desenvolvidas ao longo de milhares de anos e, mais recentemente, a área do conhecimento da musicoterapia conquistou seu espaço na psiquiatria de forma definitiva.
Considerando a intersecção entre o uso da música na psicoterapia e os benefícios terapêuticos comprovados de substâncias psicodélicas, este artigo pretende introduzir os leitores ao tema da relevância do som e da música na terapia psicodélica.
Vasculhamos os repositórios científicos mais recentes e trazemos informações sobre como a terapia assistida por psicodélicos surgiu; qual a história do uso do som e da música como ferramentas de cura e como a música pode influenciar a experiência com psicodélicos sob um ponto de vista histórico e científico. Vamos começar?
Como surgiu a terapia psicodélica?
Uma parcela significativa de pessoas não se beneficiam dos tratamentos e terapias convencionais para saúde mental. Tendo em vista essa problemática e o crescente número de indivíduos que sofrem de transtornos mentais, pesquisadores têm procurado formas de aprimorar as opções de tratamento para essas condições devastadoras.¹⁴
É aí que entram os estudos clínicos com psicodélicos. São chamadas de psicodélicas as substâncias que
Embora a terapia psicodélica seja um conceito recente na psiquiatria, a ideia de utilizar psicodélicos para cura não é recente.
O uso histórico de psicodélicos para cura psicológica e espiritual
Múltiplos autores afirmam que o uso de psicodélicos não só existe desde os primórdios da História, mas contribuiu para a evolução da humanidade. Evidências arqueológicas apontam que o uso de mescalina remonta há mais de 10.000 anos, onde hoje está localizado o Peru.⁵ Essa é a substância presente em cogumelos sagrados, como o Peiote e o Wachuma.
Quanto à psilocibina — composto ativo presente nos chamados cogumelos mágicos psilocibinos —, afrescos, vitrais, pinturas e esculturas antigas sugerem essa substância é utilizada em práticas espiritualistas curativas há milhares de anos por diferentes culturas espalhadas por todo o mundo: desde a Sibéria até a América do Sul.
Além disso, o uso de cogumelos sagrados em rituais de cura é até hoje parte da cultura de diversos povos indígenas do continente americano. Os cogumelos psilocibinos crescem naturalmente em esterco de gado e, embora a psilocibina seja proibida em quase todos os países, o cogumelo em si não é ilegal no Brasil, de modo a facilitar o estudo científico e a manutenção de cerimônias ancestrais de cura.
Primeiros passos da terapia psicodélica
Embora o uso de psicodélicos por humanos seja milenar, foi somente a partir de meados do século XX que essas substâncias começaram a ganhar popularidade ao nível global, a partir da síntese do LSD em 1938, a subsequente descoberta de seus efeitos psicoativos em 1943 e a descoberta científica da psilocibina em 1955.¹²
Nos anos 1950 e 1960, os psicoativos passaram a ser utilizados no contexto clínico para facilitar a liberação emocional e a autopercepção,⁷ formalizando os primeiros passos da terapia psicodélica. No entanto, a partir de 1970, o número de ensaios clínicos em humanos diminuiu, em razão das restrições legislativas impostas pela maioria dos países.
A renascença dos psicodélicos
Depois de duas décadas, essas restrições começaram a ser afrouxadas, e a terapia psicodélica voltou com força a partir de 1996.¹¹
Segundo o farmacólogo David E. Nichols,¹¹ desde os anos 1980, mais de 200 estudos foram publicados sobre vários aspectos da farmacologia, química e bioquímica da psilocibina. Entre eles, 112 focam nos efeitos da psilocibina em humanos, incluindo ensaios terapêuticos recentes em depressão, ansiedade e transtornos por uso de substâncias.
Esse súbito aumento dos estudos com psicodélicos culminou em muitos chamando este período de “a renascença dos psicodélicos”. Os resultados em geral apontam para a alta potencialidade dos psicodélicos como instrumentos terapêuticos, para redução dos sintomas de depressão e ansiedade,² ¹³ transtorno obsessivo-compulsivo (TOC),⁹ transtorno de estresse pós-traumático (TEPT)⁸ e vícios em substâncias diversas.¹ ⁶
O uso da música e do som para cura ao longo da História
Mudando de perspectiva, conforme as informações apresentadas por Barbara J. Crowe e Mary Scovel, em seu artigo An Overview of Sound Healing Practices: Implications for the Profession of Music Therapy, o uso de música e som como instrumentos de cura é uma ideia muito antiga.
Em toda civilização avançada da Antiguidade — da Mesopotâmia à China Antiga, do Egito à Grécia —, a música era vista como uma força capaz de mudar os indivíduos e a sociedade.³ Nossos ancestrais acreditavam que a música era uma ferramenta útil para aprimorar o bem-estar, prevenir contra doenças e auxiliar na manutenção da saúde física e mental.
Variadas técnicas de terapia com música foram desenvolvidas ou redescobertas nas últimas décadas, com base em práticas ancestrais e não ocidentais, que Crowe e Scovel chamam coletivamente de sound healing (tradução literal: “cura pelo som”). Muitas dessas abordagens existem há milhares de anos e são eficazes em seus contextos culturais.
No campo do conhecimento da musicoterapia, por outro lado, entende-se que a música não é capaz de curar doenças diretamente, mas pode ser um recurso valioso na psiquiatria.³ Nesse sentido, a musicoterapia é um tipo de terapia que utiliza música e/ou elementos musicais (como som, ritmo e harmonia) nas sessões, as quais são conduzidas por musicoterapeutas formados.¹⁰
Enquanto no sound healing o foco é nos sons e nas vibrações, independente da relação do paciente com esses sons, na musicoterapia a experiência do paciente com a música é fundamental para a determinação da abordagem terapêutica.³ ¹⁰
Vale apontar que ambas abordagens não são mutuamente exclusivas, pelo contrário: Crowe e Scovel acreditam que “o sound healing e a musicoterapia estão relacionados e constituem duas facetas de um contínuo de cura por meio do som e da música” (p. 27).³ Ademais, as autoras creem que seja necessário estudar de forma aprofundada as diversas técnicas de sound healing existentes, para aprimorar a eficácia da musicoterapia.
A importância da música na experiência psicodélica
A música e os psicodélicos estão inequivocamente interrelacionados. Nos rituais e cerimônias tradicionais realizados por povos nativos dos continentes americano e africano, as composições musicais, sobretudo músicas e cânticos, são parte fundamental da prática de cura com psicodélicos.³ ⁵
Segundo os autores do artigo Psychedelia: The interplay of music and psychedelics,⁵ “o uso de música em acompanhamento com psicodélicos pode ser considerado quase tão antigo quanto o uso de qualquer um desses elementos isoladamente” (p. 13).
A música ajuda a criar um ambiente seguro e acolhedor durante as sessões de terapia assistida por psicodélicos e cerimônias enteogênicas, facilitando o processamento de emoções e a autorreflexão, além de influenciar mudanças duradouras no comportamento. Além disso, aqueles que criam música em ambientes cerimoniais são tradicionalmente reverenciados por seu valor imperativo e influência no processo terapêutico.⁴
Enfim, estudos têm demonstrado que os psicodélicos modulam significativamente a emoção evocada pela música, as imagens mentais evocadas pela música e o significado pessoal percebido da música. Sem contar que os pacientes submetidos à terapia assistida por psicodélicos frequentemente se referem à música como algo que influencia significativamente sua experiência.⁷
A escolha da música é relevante na terapia psicodélica?
Assim como na musicoterapia, na terapia psicodélica a escolha da música é muito importante para a eficácia do tratamento. Ainda não há uma padronização definitiva desse processo nos ensaios clínicos publicados, porém podemos observar consistências no tipo de música selecionada.
Duas playlists usadas em ensaios clínicos de terapia assistida por psicodélicos estão disponíveis publicamente no Spotify. Conforme indica a pesquisadora Clare O’Callaghan: “Bill Richards (Baltimore) usou muita música clássica e evitou letras em inglês, exceto na fase final da sessão, afirmando que a música clássica e não lírica minimiza o pensamento usual e racional”.¹²
Mendel Kaelen, por sua vez, usou música clássica, neoclássica, ambiente, jazz e étnica na construção de sua playlist psicodélica. Além disso, música muito familiar foi evitada, porque Kaelen acreditava que esse tipo de música cortava a oportunidade de receber novas experiências.
Estudiosos em geral enfatizam a importância de adaptar suas playlists conforme as experiências e preferências dos pacientes. Além disso, apontam para a necessidade de ordenar as músicas com base nas diferentes fases do efeito da psilocibina, para guiar a experiência e aumentar a eficácia da terapia psicodélica.
Você pode acessar a playlist de Kaelen aqui, e a playlist de Bill Richards aqui.
Expectativas para o futuro da terapia psicodélica, da musicoterapia e do sound healing
Apesar da abundância de ensaios clínicos que vêm sendo realizados nas últimas décadas, é necessário que mais estudos sejam feitos, com um número mais amplo de participantes, para comprovar de maneira definitiva a eficácia da terapia psicodélica, sua segurança e métodos eficazes.
Contudo, considerando os resultados positivos de estudos já existentes, o crescente interesse da indústria farmacêutica nesse tópico e as mudanças na legislação, é de se esperar que as substâncias psicoativas venham um dia a fazer parte da nossa medicina convencional.
Como a música é essencial na terapia assistida por psicodélicos, os musicoterapeutas podem potencialmente fazer contribuições importantes para a terapia psicodélica se os psicodélicos se tornarem medicamentos aprovados.
Os conhecimentos já acumulados pela musicoterapia podem guiar as sessões assistidas por psicodélicos, e a interação com psicodélicos pode intensificar a conexão dos pacientes com a música, de modo a ter experiências terapêuticas mais profundas e significativas.
Ademais, as práticas de sound healing podem auxiliar musicoterapeutas a aprimorar suas técnicas, assim como o conhecimento de musicoterapia pode auxiliar praticantes de sound healing a expandir sua compreensão sobre as formas como o som e a música impactam seus pacientes em um nível fisiológico.
Resumo
O uso de psicodélicos e de música para tratamento e manutenção de saúde mental e espiritual é tão antigo quanto a própria humanidade, e os seres humanos criaram incontáveis técnicas terapêuticas e rituais para ajudar as pessoas a contornarem conflitos da mente usando psicodélicos, música e som.
Considerando a importância da música e do som na terapia psicodélica, na musicoterapia e nas técnicas de sound healing, a intersecção entre essas práticas possui o potencial para possibilitar a expansão do conhecimento de cada uma delas, de modo a se fortalecerem juntas.
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Referências
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3. CROWE, Barbara J.; SCOVEL, Mary. An Overview of Sound Healing Practices: Implications for the Profession of Music Therapy. Music Therapy Perspectives, Oklahoma, v. 14, n. 1, p. 21–29, maio 1996.
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